sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A dama, o lago e o caos.

Era uma noite quente de verão, dormir era difícil mesmo com o ventilador na velocidade máxima. Vou arrumar um ar condicionado! pensou, mas sabia que passaria mais um verão sofrendo com o calor. Então simplesmente desistiu, levantou, bebeu um copo de água gelada e ficou à admirar a noite pela janela. Era uma noite sem luar e sem nuvens, as estrelas reluziam com força no firmamento, se reduzissem as luzes da cidade seria possível ver os traços da galáxia em meio ao cosmos. E como se a visão pela janela não fosse o suficiente, vestiu-se levemente e deixou o abrigo opressor do lar.

Caminhava pelas ruas desertas sem rumo, ou preocupação, apenas grato pela liberdade de sentir a brisa noturna tocar a pele, transpassando o fino tecido da camiseta que o cobria seu torso. Não tinha ideia de por quanto tempo caminhara, nem mesmo que horas eram, apenas que passava das duas da manhã, e bem... talvez você saiba o que isso significa.

Ao olhar para o céu percebeu que as estrelas estavam mais brilhantes que antes, e se deu conta que adentrara o parque da cidade. Local muito bonito durante o dia, mas que à noite se tornava refúgio para aqueles que não tinham onde mais se abrigar. Não se incomodou, apenas continuou andando como vinha fazendo, por horas, provavelmente.

No meio do parque havia um lago, com peixes, cisnes e outros animais que gostavam dos alimentos arremessados pelos humanos. E em uma parte mais estreita do lago tinha um ponte alta e arqueada que conectava as duas margens. Foi ali que ele a avistou, ela parecia uma personagem de filme com aquele vestido longo azul celeste que parecia emanar luz própria. Fantasmagórica e linda.

Não se importou se poderia ser um fantasma, ou algum espirito, ou orixá. Apenas subiu a ponte indo na direção dela, como se uma força magnética o guiasse. Parou ao seu lado, ela olhava para o lago, calmo e escuro como uma extensão da própria noite. Em nenhum momento ela esboçou perceber a presença dele ao seu lado, mas ainda assim perguntou:

- O que aflige seu coração?

- Não sei ao certo. - Respondeu sobressaltado, tanto com a pergunta quanto com sua resposta rápida e honesta. - O que aflige o seu?

- Acho que seria mais fácil perguntar o que não aflige. O que você vê ao olhar pra este lago?

Ele olha pro lago, calmo e escuro, refletindo as estrelas do céu. - Água! - Responde.

- O que vemos não é a água, é apenas a superfície dela, o limite entre dois mundos, separando o caos interno do caos externo. Dentro do lago um mundo, fora dele outro. O que há dentro do seu lago?

- O que mais poderia haver além do caos? - uma curta e amarga risada emana de sua garganta.

Ela o olha pela primeira vez, e ele congela. Seus olhos são de um azul piscina tão intensos que parecem querer suga-lo pra dentro deles, sua pele branca parecia querer substituir a lua ausente com seu brilho, e emoldurando o rosto suave, longos cabelos negros como a própria noite. Ele sabe que ela o está examinando, e sabe que nem a muralha da China o protegeria daquele olhar. Ela o examina através da roupa, da carne, dos nervos, dos ossos. Ela lê a alma dele como se estivesse lento um banner qualquer, e ele sente sua essência estremecer sob aquele olhar.

- Se existisse uma resposta correta, essa provavelmente seria ela. - disse abrindo um leve sorriso que o desmontou por dentro. - Você teme o caos?

Dessa vez a resposta não veio rapidamente aos seus lábios. Ele encosta na beirada da ponte e olha mais uma vez para o lago. A superfície calma, escura, refletindo as estrelas sem entregar nada daquilo que que se passava abaixo, estariam os peixes dormindo? Haveria uma luta desesperada pela sobrevivência logo abaixo da plácida superfície? As infinitas possibilidades sem resposta para algo tão trivial quanto um lago à noite. - Sim... Não sei o que virá do caos... E isso pode me destruir.

- Sim, pode mesmo, mas sem o caos não há vida. O universo inteiro, desde as partículas de cada átomo até a dança eterna das galáxias, tudo é caos. Tudo está se destruindo para se reconstruir de uma forma diferente. 

- Então eu deveria deixar o meu caos interior me destruir?

- Não tem curiosidade de conhecer a si mesmo reconstruído?

Então se pegou imaginando, como seria sua versão reconstruído, após se destruir de dentro pra fora? Seria melhor ou pior que o seu eu atual? Será que as pessoas gostariam dessa nova versão? Será que o amariam? Será que ele se amaria?

Virou-se para ela, encontrando novamente aquele olhar que sabia muito mais sobre ele, do que ele mesmo. - Acho que tenho curiosidade, mas também tenho medo de me tornar outra pessoa.

- É impossível se tornar outra pessoa, você é o seu caos interior, seu novo eu seria apenas uma nova forma desse mesmo caos, seria você mesmo, sempre será, assim como o lago sempre será o lago. Você não precisa temer quem você já é.

"O lago sempre será o lago", Eu sempre serei eu. Era o que ele pensava enquanto fitava novamente o lago escuro, e fitava também o céu e percebeu que as estrelas começavam a se apagar, o negro da noite começava a recuar. O sol já vai nascer, quanto tempo fiquei aqui? E como se desperto pela luz do dia que se aproximava, se perguntou quem seria aquela linda mulher que o ensinara tanto. Olhou pro lado mas ela não estava mais lá, olhou ao redor e nenhum sinal dela. A quanto tempo ela partiu? Não saberia dizer.

Quando já começara a acreditar que estivera delirando, e que a mulher nunca existiu, avistou uma fina fita azul amarrada em seu calcanhar. Ela definitivamente não estava ali quando saiu de casa naquela madrugada. E soube ali que não sonhara, não foi uma alucinação, aquela mulher linda realmente estava ali com ele. Porém quem era ela? Seria uma mulher muito sábia, uma sacerdotisa de algum deus pagão antigo, uma santa cristã, um fantasma, um ser de outra dimensão, ou até mesmo um alienígena?...

Todo o resto de sua vida buscou a resposta pra essa pergunta, mas nenhuma de suas versões jamais obteve sucesso nisso.

 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Negros e Selvagens

O borrão que passara nas bordas da visão era uma placa que indicava o quilometro daquele ponto da estrada, mas ele não a viu, não precisava ver, e nem queria. Apenas queria continuar sentindo o vento no rosto, sentir a jaqueta de couro repuxar ao cortar o ar a mais de 100 km/h em cima da sua Harley Davidson Fat Boy. E o destino? O próximo quilometro, a próxima curva, a próxima parada que a vida lhe mostraria.

Ao fim daquele dia, chegara a um destino. Uma pequena cidade costeira, com não mais de cinco mil habitantes. Marcada por uma pequena igreja no centro, a maior parte do comércio em volta e nas ruas adiante pequenas casas se somavam num curto espaço até acabarem num morro de vegetação densa. Pouco afastado do centro e mais próximo à estrada, se apresentava um posto de gasolina, com restaurante e hotel de aparência barata. 

Daniel parou sua moto no estacionamento do posto, e foi direto à recepção do hotel onde pediu um quarto. No quarto, apenas uma cama, uma TV de tubo pequena na parede e um ventilador de teto. Ele não se demora muito ali, apenas deixa a sua bolsa em cima da cama e vai para o restaurante. No restaurante há mesas de madeira com toalhas com um padrão xadrez de branco e vermelho, e um balcão com altos bancos de aço fixos ao chão. 

Daniel não está exatamente com fome, senta-se no balcão e pede apenas um sanduíche simples que devora com agilidade enquanto toma um suco artificial de maquina pra ajudar o sanduiche a descer. Alimentado, pede uma cerveja, o garçom o deixa com uma garrafa e um copo americano.

Talvez uma hora e duas garrafas depois, algo lhe chama a atenção. Uma moça em seus plenos vinte e poucos anos, pele num tom caramelo e olhos verdes, usando um vestido azul folgado, mas que lhe marcava as curvas com o vento. Mas o que realmente lhe chamou atenção foram os cabelos escuros encaracolados, caindo em cachos lindos e selvagens até as costas. Ao ver aqueles cachos ele pens... Melhor nem pensar...

A moça que reparara no olhar do forasteiro, resolveu se aproximar, afinal em uma cidade pequena como aquela não é comum aparecer tal tipo. Alto, forte, com cabelos castanhos lisos e bagunçados, uma barba da mesma cor lhe dava um tom misterioso, e ainda tinha certo estilo com a calça jeans que delimitava pernas fortes, um coturno e uma jaqueta de couro ao estilo motoqueiro.

- Oi! Novo na cidade? - Ela disse ao se aproximar e sentar no banco ao lado, jogando deliberadamente um cacho atrás da orelha.

- Apenas de passagem... - Respondeu Daniel, ele queria parecer mais seco, mas sentia o coração disparar.

- E para onde está indo? Se me permite a pergunta.

- Não tenho destino, estou apenas aproveitando a estrada.

- Hummm! Você é do tipo viajante então? Aquela moto lá fora é sua?

- Sim, é a minha moto...

Ao decorrer desse curto dialogo, Daniel percebe que a moça já se aproximou perigosamente, e o desejo latente entre eles já é palpável em cada gesto ou palavra. Simples assim, ele sabia o que aconteceria, e ela também sabia, e os dois queriam, a conversa não teria que se alongar muito. 

- Aliás, meu nome é Jamile. E o seu? - Ela diz enquanto coloca a mão sobre a perna dele.

Nesse momento, Daniel sente a sobriedade retornar à sua mente como um tiro. "Jamile, Jamile, Jamile, porque um nome tão parecido? E os cachos negros e selvagens? Não são tão bonitos quanto. E a mão na perna? no exato local que ela tocou quando nos conhecemos". Aquilo tudo foi demais pra Daniel.

Ele se levanta de repente deixando-a com uma cara assustada. Ele pede desculpas e diz adeus, sem nem olhar na direção da moça. E como que no piloto automático paga a conta e sai para a rua sem rumo. Logo avista um pequeno mercado ainda aberto, entra e compra um pack de cerveja. 

Já tomando a primeira cerveja do pack, ele continua a andar sem rumo ou direção. Mas a mente já o direciona para as coisas que ele não havia percebido antes, o cheiro da maresia, o barulho das ondas quebrando ao fundo, antes que percebesse Daniel já andava nas areias da praia, se dirigindo ao ponto mais vazio possível.

Daniel se sentou na areia, uma lua crescente iluminava a noite e se refletia no mar escuro, cortado pela espuma das ondas. "A lua logo estará cheia, ela ama a lua cheia..." esse foi seu primeiro pensamento ao  se sentar ali. Mas não foi o ultimo. Enquanto esvaziava uma cerveja após a outra, Daniel relembrou vários momentos que passaram juntos, momentos tão bons que ficaram gravados na alma. Começou a se perguntar o que dera errado, porque não estava com ela naquele momento. E se lembrou...

Uma gota caíra em em sua mão, olhou para o céu, mas viu apenas as estrelas e nenhuma nuvem, mas estava tudo turvo. Percebeu assim que estava chorando. Aquela lembrança doía demais. Queria poder ter uma máquina do tempo para voltar aquele momento, mas sabia que cometeria o mesmo erro milhares de vezes, era inevitável.

Tirou o celular do bolso, desbloqueou a tela e abriu o contato dela apenas para admirar a foto nova. Ela estava linda como sempre, olhos negros emoldurados em um rosto com bochechas rosadas e uma boca de lábios fartos que guardavam o sorriso mais lindo já visto, e os cachos, negros e selvagens despencando ao redor em uma harmonia caótica incomparável. 

Logo vieram todas as perguntas sobre ela, que rondavam a cabeça dele, a começar por "Ela está bem?". E a vontade de mandar uma mensagem pra ela só crescia. Mas ele apagou a tela do celular e o guardou no bolso. Sabia que não era o momento, que aquilo só a machucaria mais.

Voltou pro hotel e se entregou ao sono sobre os lençóis de aspecto duvidoso. Na manhã seguinte acordou com o canto do galo, se arrumou, tomou café da manhã e partiu. O próximo destino o esperava após mais algumas placas que passariam como borrões pela visão, mesmo ele não sabendo qual destino seria esse. 

Mas de certa forma, ele sabe qual serão os dois últimos destinos desta jornada. Sendo o último sempre a morte, o penúltimo será aquele único que ele pode chamar de lar, além da estrada. O lar onde ele sente a única coisa melhor que a sonhada liberdade. O lar que ele se arrepende de ter deixado pra trás. O lar que se encontra embaixo de cachos negros e selvagens...


terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Devaneios Furados XVII

Um novo ano começou, e junto com o calendário muitas outras coisas também mudaram, ou estão em processo de mudança... Mas essas mudanças não estão acontecendo por causa do calendário, elas estão acontecendo porque eu resolvi mudar... Elas estão acontecendo porque eu precisava mudar... Tomar o caminho mais difícil, que sempre leva à mudanças, pra poder voltar a ter o tipo de vida que à muito se perdeu aos meus olhos... E a mudança no calendário, casou de forma até simbólica com a minha mudança pessoal... 

É engraçado como uma série de infortúnios, escolhas erradas, e algo que só posso categorizar como azar absoluto, me trouxeram até esse momento... Momento em que sou finalmente dono de mim novamente... Finalmente sou o senhor do meu destino, mesmo que a vida me leve na direção oposta a que eu quero... É sobre decisões... Eu estou no controle das minhas decisões... Até aquelas que me fazem perguntar o Porquê... Até aquelas que podem me levar à ruína... São 100% minhas novamente...

E assim eu vou iniciando um novo ano no calendário... Uma nova rotação ao redor do sol... 12 novos ciclos lunares... E junto com cada lua, muitas emoções... É um ano predestinado a grandes emoções... Algumas maravilhosas... Outras, agoniantes... Mas se tem um ritmo que estará presente nesse ano, são as batidas fortes e altas de corações... E que venham todas elas... Não tenho medo dessas emoções... Dançarei conforme a musica, sem perder de vista aonde quero chegar... Chorarei e sorrirei... Viverei, e estarei confortavelmente mais próximo da morte a cada dia... Pois o novo, é uma questão de perspectiva... Feliz Ano Novo...