quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Negros e Selvagens

O borrão que passara nas bordas da visão era uma placa que indicava o quilometro daquele ponto da estrada, mas ele não a viu, não precisava ver, e nem queria. Apenas queria continuar sentindo o vento no rosto, sentir a jaqueta de couro repuxar ao cortar o ar a mais de 100 km/h em cima da sua Harley Davidson Fat Boy. E o destino? O próximo quilometro, a próxima curva, a próxima parada que a vida lhe mostraria.

Ao fim daquele dia, chegara a um destino. Uma pequena cidade costeira, com não mais de cinco mil habitantes. Marcada por uma pequena igreja no centro, a maior parte do comércio em volta e nas ruas adiante pequenas casas se somavam num curto espaço até acabarem num morro de vegetação densa. Pouco afastado do centro e mais próximo à estrada, se apresentava um posto de gasolina, com restaurante e hotel de aparência barata. 

Daniel parou sua moto no estacionamento do posto, e foi direto à recepção do hotel onde pediu um quarto. No quarto, apenas uma cama, uma TV de tubo pequena na parede e um ventilador de teto. Ele não se demora muito ali, apenas deixa a sua bolsa em cima da cama e vai para o restaurante. No restaurante há mesas de madeira com toalhas com um padrão xadrez de branco e vermelho, e um balcão com altos bancos de aço fixos ao chão. 

Daniel não está exatamente com fome, senta-se no balcão e pede apenas um sanduíche simples que devora com agilidade enquanto toma um suco artificial de maquina pra ajudar o sanduiche a descer. Alimentado, pede uma cerveja, o garçom o deixa com uma garrafa e um copo americano.

Talvez uma hora e duas garrafas depois, algo lhe chama a atenção. Uma moça em seus plenos vinte e poucos anos, pele num tom caramelo e olhos verdes, usando um vestido azul folgado, mas que lhe marcava as curvas com o vento. Mas o que realmente lhe chamou atenção foram os cabelos escuros encaracolados, caindo em cachos lindos e selvagens até as costas. Ao ver aqueles cachos ele pens... Melhor nem pensar...

A moça que reparara no olhar do forasteiro, resolveu se aproximar, afinal em uma cidade pequena como aquela não é comum aparecer tal tipo. Alto, forte, com cabelos castanhos lisos e bagunçados, uma barba da mesma cor lhe dava um tom misterioso, e ainda tinha certo estilo com a calça jeans que delimitava pernas fortes, um coturno e uma jaqueta de couro ao estilo motoqueiro.

- Oi! Novo na cidade? - Ela disse ao se aproximar e sentar no banco ao lado, jogando deliberadamente um cacho atrás da orelha.

- Apenas de passagem... - Respondeu Daniel, ele queria parecer mais seco, mas sentia o coração disparar.

- E para onde está indo? Se me permite a pergunta.

- Não tenho destino, estou apenas aproveitando a estrada.

- Hummm! Você é do tipo viajante então? Aquela moto lá fora é sua?

- Sim, é a minha moto...

Ao decorrer desse curto dialogo, Daniel percebe que a moça já se aproximou perigosamente, e o desejo latente entre eles já é palpável em cada gesto ou palavra. Simples assim, ele sabia o que aconteceria, e ela também sabia, e os dois queriam, a conversa não teria que se alongar muito. 

- Aliás, meu nome é Jamile. E o seu? - Ela diz enquanto coloca a mão sobre a perna dele.

Nesse momento, Daniel sente a sobriedade retornar à sua mente como um tiro. "Jamile, Jamile, Jamile, porque um nome tão parecido? E os cachos negros e selvagens? Não são tão bonitos quanto. E a mão na perna? no exato local que ela tocou quando nos conhecemos". Aquilo tudo foi demais pra Daniel.

Ele se levanta de repente deixando-a com uma cara assustada. Ele pede desculpas e diz adeus, sem nem olhar na direção da moça. E como que no piloto automático paga a conta e sai para a rua sem rumo. Logo avista um pequeno mercado ainda aberto, entra e compra um pack de cerveja. 

Já tomando a primeira cerveja do pack, ele continua a andar sem rumo ou direção. Mas a mente já o direciona para as coisas que ele não havia percebido antes, o cheiro da maresia, o barulho das ondas quebrando ao fundo, antes que percebesse Daniel já andava nas areias da praia, se dirigindo ao ponto mais vazio possível.

Daniel se sentou na areia, uma lua crescente iluminava a noite e se refletia no mar escuro, cortado pela espuma das ondas. "A lua logo estará cheia, ela ama a lua cheia..." esse foi seu primeiro pensamento ao  se sentar ali. Mas não foi o ultimo. Enquanto esvaziava uma cerveja após a outra, Daniel relembrou vários momentos que passaram juntos, momentos tão bons que ficaram gravados na alma. Começou a se perguntar o que dera errado, porque não estava com ela naquele momento. E se lembrou...

Uma gota caíra em em sua mão, olhou para o céu, mas viu apenas as estrelas e nenhuma nuvem, mas estava tudo turvo. Percebeu assim que estava chorando. Aquela lembrança doía demais. Queria poder ter uma máquina do tempo para voltar aquele momento, mas sabia que cometeria o mesmo erro milhares de vezes, era inevitável.

Tirou o celular do bolso, desbloqueou a tela e abriu o contato dela apenas para admirar a foto nova. Ela estava linda como sempre, olhos negros emoldurados em um rosto com bochechas rosadas e uma boca de lábios fartos que guardavam o sorriso mais lindo já visto, e os cachos, negros e selvagens despencando ao redor em uma harmonia caótica incomparável. 

Logo vieram todas as perguntas sobre ela, que rondavam a cabeça dele, a começar por "Ela está bem?". E a vontade de mandar uma mensagem pra ela só crescia. Mas ele apagou a tela do celular e o guardou no bolso. Sabia que não era o momento, que aquilo só a machucaria mais.

Voltou pro hotel e se entregou ao sono sobre os lençóis de aspecto duvidoso. Na manhã seguinte acordou com o canto do galo, se arrumou, tomou café da manhã e partiu. O próximo destino o esperava após mais algumas placas que passariam como borrões pela visão, mesmo ele não sabendo qual destino seria esse. 

Mas de certa forma, ele sabe qual serão os dois últimos destinos desta jornada. Sendo o último sempre a morte, o penúltimo será aquele único que ele pode chamar de lar, além da estrada. O lar onde ele sente a única coisa melhor que a sonhada liberdade. O lar que ele se arrepende de ter deixado pra trás. O lar que se encontra embaixo de cachos negros e selvagens...


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